Refúgio do ruído

Curadoria e textos de João Villaverde

Todo dia terminado em 7 (07, 17 e 27) no seu e-mail, de graça. Uma newsletter bem pessoal. Aqui você receberá sugestões de leituras acompanhadas de breves comentários. A ideia do nome veio do ambiente insalubre lá fora, cheio de ruído.

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Estamos juntos



São tempos incertos, tempos sombrios. Da última vez que enviei a você este Refúgio, eram 15 mil brasileiros e brasileiras mortos pela Covid-19. Hoje, apenas vinte dias depois, são mais de 36 mil. O número exato não é claro: o Ministério da Saúde simplesmente apagou seu site, substituindo por uma versão simplória, com registros como se fossem stories do Instagram (como alguém que faz isso, em meio a uma pandemia, consegue dormir à noite?)

O governo Bolsonaro sabota a saúde pública, agride o bom senso e pratica uma política que é, quando muito, inepta, mas, no mais das vezes, do caos. Temos um ministro do Meio Ambiente que faz o contrário do que o cargo exige. Ele não zela por nossa fauna e flora; ao contrário, permite sua invasão e destruição. Temos um ministro da Educação que não pensa o futuro (o que ocorrerá com o Fundeb em 2021, dado que ele acaba neste ano?), não trabalha o presente (como serão retomadas das aulas presenciais?) e tenta reescrever o passado. Temos na Cultura, nos Direitos Humanos, nas Relações Exteriores, a antítese do que essas instituições representam. Não é apenas simbólico que a Casa Civil seja ocupada não por um civil, mas por um militar.

Hoje é 7 de junho de 2020. Temos, ainda, todo o mês de junho pela frente. Depois, todo o segundo semestre de 2020, todo o ano de 2021 e todo o ano de 2022. Como suportar por todo este tempo este grau de inépcia, omissão e destruição institucional que vivemos hoje? 

Tenho pensado muito em nosso passado. Uma história que não sai de minha cabeça nos últimos dias é a de Teotônio Vilela. Teotônio foi quase uma esquete do Brasil profundo dos anos 1940-50: primeiro como boiadeiro em Viçosa, interior de Alagoas, depois como rico usineiro, conservador. Entra para a política em Maceió, pela UDN, de direita. É o autor do impeachment do então governador alagoano, Muniz Falcão, em 1957, numa história que terminou em tiros dentro da assembleia, com um parlamentar assassinado.

Apoia entusiasticamente o golpe de 1964 e é filiado de primeira hora da Arena, o partido que dava sustentação para a ditadura militar. Chega a Brasília como senador. 

Teotônio critica o AI-5, baixado a 13 de dezembro de 1968, quando a ditadura passa de envergonhada a escancarada (em termos gasparianos). O então o ministro da Justiça, Gama e Silva, considera sua cassação. Não foi para tanto, dados os laços de alto coturno que o usineiro alagoana conservava ainda naqueles tempos, e Teotônio continua a apoiar a ditadura nos anos seguintes (sob Médici e Geisel).

Eis, então, que começa uma mudança. De início, suave. Mas logo a velocidade aumenta e Teotônio passa a buscar mais informações sobre as práticas dos porões do regime. Ele se insurge contra a nefasta invasão da PUC-SP pela tropa do coronel Erasmo Dias, em 1977. Cada vez mais próximo da oposição, Teotônio vai para o MDB e preside a comissão de análise da Anistia, em 1979. Não fica só na abertura de arquivos: vai ele mesmo verificar as cadeias onde a ditadura mantinha os presos políticos que ainda não tinham sido mortos. Teotônio vai além: leva parlamentares com ele, com isso forçando a entrada da imprensa, revelando intestinos da ditadura.

Com Ulysses, Paulo Brossard e tantos outros, Teotônio funda o PMDB e logo passa a fazer parte da esquerda partidária. Em 1980, se apaixona perdidamente por uma militante comunista. Nas greves sindicais em São Bernardo do Campo, Teotônio intercede em favor dos presos, incluindo Lula. A oposição ganha estados importantes, pelo voto, em 82 (Brizola no Rio, Tancredo em Minas e Montoro em São Paulo).

O entulho da ditadura pesa: o país está famélico, com hiperinflação, dívida externa impagável, descontrole fiscal e sem qualquer transparência. Do lápis do grande Henfil, que adorava Teotônio, surge o grito "Diretas Já!". Fafá de Belém canta "O Menestrel das Alagoas", em homenagem ao velho alagoano. Muito doente, Teotônio falece no fim de 1983 e não vê a abertura que ele ajudou a dar gatilho, ao unir dentro de um mesmo barco comunistas, sindicalistas, Tancredo, Brizola, Ulysses, FHC, artistas, cantoras, diretores de teatro, financistas. Personalidades que discordavam em quase tudo, mas concordavam com marcos mínimos, básicos: democracia, transparência da coisa pública, abertura. 

Hoje, 2020, há muito o que separa Luciano Huck, apresentador de TV e ex-eleitor de Aécio Neves, de Flávio Dino, comunista e governador de Alagoas. Mas estão juntos no manifesto #Juntos, assinado também por Priscila Cruz, FHC, Fernando Haddad, Mandetta, Bresser-Pereira, Antonia Pellegrino, Andrea Beltrão, Oscar Vilhena, Andreas Kisser e outras e outros 281 mil brasileiros (incluindo o autor deste Refúgio do Ruído). São marcos mínimos, que unem. É preciso começar de alguma forma.

Se você quiser ler mais sobre Teotônio Vilela, sugiro fortemente a biografia que Carlos Marchi escreveu (e que eu tive o prazer de resenhar). Se quiser uma leitura atual e sensata sobre o governo Bolsonaro, sugiro "Ponto Final", o livro novo de Marcos Nobre (li no último domingo e gostei muito). Se quiser pensar mais sobre o impeachment, convido a assistir este papo que tive a sorte de participar com meu grande orientador de mestrado Claudio Couto (FGV) e com Lucas Paulino.

FUGA

 

Se você achou que aqui eu voltaria a falar de nosso poeta Aldir Blanc... você está certo.

O mais lindo e forte obituário que li sobre nosso poeta, levado pela COVID-19 e pelo descaso brasileiro, foi escrito pelo grande Álvaro Costa e Silva. Vale a leitura de cada palavra. Aqui.

P.S. Tirei a foto que acompanha a seção Fuga em maio de 2013, durante uma viagem de trabalho ao sertão baiano. Lá na frente está Monte Santo. Saudade de viajar pelo Brasil.

*AVISO*


Como avisei em nosso último encontro, dia 17/05, eu não circularia este Refúgio do Ruído no 27/05, voltando somente hoje. Cá estou. Usei o tempo precioso para concluir um projeto que comecei há três anos. O ponto final foi colocado ontem, mesmo dia em que meu filho Teo completou dois anos. Foi uma grande alegria aqui em casa. Prometo contar que projeto é esse. Ainda neste mês.

 

P.S. Tirei a foto que acompanha este Aviso em Turim, do alto do museu do Cinema, durante uma viagem de trabalho que fiz para a Itália em março de 2014. A visão dos alpes.... 

Os franceses são, por natureza, chegados a escrever. Como conta Rosa Freire D'Aguiar, tradutora premiada e uma mulher genial, as editoras francesas estão abarrotadas de originais. As escritoras e os escritores estão usando o confinamento para produzir obras (alguns títulos: "A revanche do pangolim" e "Amores sob confinamento"). A arte acima é de Olivier Balez, reproduzida do Le Monde, uma dica de Rosa.

BOAS LEITURAS

 

Eu não poderia ter começado junho com uma leitura melhor. Peguei na estante "O homem que plantava árvores", de Jean Giono. Ele estava aqui comigo há quase dois anos, mas somente agora chegara o tempo certo. Talvez seja a busca por reenergizar o espírito, talvez seja apenas coincidência. 

Giono conta a história de um homem solitário, nos alpes franceses, que perdeu a esposa e o filho. São cinquenta anos de uma vida, contados de forma breve, direta. Um trecho:

"Para que o caráter de um ser humano desvende qualidades realmente excepcionais, é preciso ter a boa sorte de poder observá-lo em ação durante longos anos. Se essa ação é despida de todo egoísmo, se o espírito que a orienta é de uma generosidade sem igual, se é absolutamente certo que ela não buscou recompensa nenhuma e que, além do mais, deixou marcas visíveis neste mundo, então estamos, sem sombra de dúvida, diante de um caráter inesquecível." 

A edição da Editora 34 é arrebatadora. Está para surgir um livro tão bonito quanto este. O projeto gráfico é de Raul Loureiro, com ilustrações de Daniel Bueno e a tradução de Cecília Ciscato e Samuel Titan Jr. Vale a pena.

P.S. A foto que acompanha este Boas Leituras eu tirei em fevereiro do ano passado de dentro da Hatchard´s, livraria londrina que está no mesmo endereço no bairro de Green Park desde 1797. Uma joia urbana.

PAUSA
 

O confinamento me faz pensar na infância. Na minha primeira casa, no Tucuruvi, zona norte de SP, meus pais não tinham telefone (e minha mãe, médica, precisava atravessar a rua em busca de um orelhão para fazer acompanhamento dos pacientes). Trocavam-se cartas. Este costume praticamente morreu (cá estou aqui mandando um e-mail, meio este que também soa antiquado hoje, eu sei). 

Mas há cartas e cartas.

Pense ler uma correspondência privada entre o escritor Graciliano Ramos e o artista plástico Cândido Portinari. Nesta aqui, reproduzida esses dias pelo IMS, Graciliano escreve do Rio e especula se há um lado bom para a dor e as mazelas. A dor existirá sempre.

Mas eu achei especialmente interessante ler  Graciliano relatar que, já em 1946, "nossos ricaços em geral são burros". É verdade. Aliás, não só no passado: basta ter em mente esta pesquisa de 2018. 
 

P.S. Tirei a foto que acompanha esse segmento Pausa dentro de um prédio em Paris, numa viagem de trabalho em outubro de 2019. 

Sobre a newsletter
 

Decidi escrever essa newsletter para compartilhar com amigas e amigos alguns pensamentos e algumas das leituras mais interessantes que venho fazendo. Se você tiver dicas na linha do que encontrou aqui, me mande!

 

Todo dia terminado em sete (07, 17 e 27) mandarei ela para você. 


P.S. Eu tirei a foto que acompanha esse segmento durante uma viagem de trabalho para Londres em fevereiro de 2019. Estamos dentro do Ship´s Tavern, uma taverna instalada no centro de Londres desde 1549 (você não leu errado; o bar foi inaugurado um século antes de Hobbes escrever O Leviatã e antes, também, da Revolução Gloriosa).

Obrigado por chegar até aqui. No dia 17 tem mais. 

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