Refúgio do ruído

Curadoria e textos de João Villaverde

Todo dia terminado em 7 (07, 17 e 27) no seu e-mail, de graça. Uma newsletter bem pessoal. Aqui você receberá sugestões de leituras acompanhadas de breves comentários. A ideia do nome veio do ambiente insalubre lá fora, cheio de ruído.

Este e-mail foi encaminhado a você? Se inscreva clicando aqui para receber a newsletter direto na sua caixa de entrada.

A arte da persuasão

 

Governos e bancos centrais, no mundo inteiro, estão reagindo aos impactos diretos e indiretos da pandemia do COVID-19, o novo coronavírus. O que faz uma ideia (como, por exemplo, dar dinheiro para famílias e pequenas empresas atravessarem o isolamento, como fez a Austrália) virar política pública e outra ideia não? Somos treinados desde cedo a pensar que há sempre o mérito explicando as coisas como elas são: uma ideia vira política simplesmente porque ela é superior tecnicamente a outras ideias. 

 

Não é sempre assim. 

 

Saber vender uma ideia no debate público é crucial. O poder da retórica é quase tão importante quanto o arcabouço técnico. Saber tocar no imaginário coletivo é, portanto, central para qualquer policy maker fazer valer a sua ideia. O mesmo vale para aqueles que estão fora do governo, mas que desejam influenciar políticas públicas. 

 

Essa disputa pela influência das políticas públicas ocorre neste exato momento no Brasil. Envolve as respostas do governo para fazer frente ao COVID-19, que paralisa atividades econômicas, agredindo tanto a demanda (porque consumimos menos em isolamento) quanto a oferta (porque faltam partes e peças dado que parceiros comerciais também estão em shutdown).

O debate sobre a reação está quente e tem de tudo circulando. 

Dependendo de quem você ler ou ouvir, o governo terá que derrubar o teto constitucional de gastos para fazer frente ao COVID-19. O governo pode, também, manter o teto como está e usar seus mecanismos existentes (créditos extraordinários para a Saúde; decretar estado de calamidade pública, tal como permite a Lei de Responsabilidade Fiscal). 

 

Gostei muito do papo que a Renata Lo Prete teve com a economista Débora Freire (UFMG) e os economistas Marcos Mendes (Insper) e Bráulio Borges (FGV). A coluna do Pedro Nery no Estadão, defendendo ampliação imediata do Bolsa Família, está ótima. 

 

Até aqui, no entanto, apenas uma parte tímida chegou ao governo brasileiro, que optou por um pacote que inclui repetição de medidas (como liberar o FGTS para quem tem conta). Gostei da análise da economista Adriana Dupita. Também me chamou a atenção a falta de medidas para os trabalhadores informais. Nada menos do que 40% de todos que trabalham no Brasil são informais e precisam de apoio durante a travessia, que apenas começou.

O presidente claramente está desorientado (o que não surpreende), mas o governo precisa agir de forma autônoma porque corre contra o tempo.

 

 

Retórica e narrativa

 

Não é de hoje que sabemos que saber vender uma ideia, construindo uma narrativa consistente (que deve ser apoiada, se possível, em boa retórica) é importante. Há quase um século, o economista inglês John Maynard Keynes publicou Essays in Persuasion e anotou a 8 de novembro de 1931 ter sido:

"... no espírito da persuasão que a maior parte desses ensaios foram escritos, numa tentativa de influenciar opinião". 

Há poucas semanas, no fim de 2019, o economista Robert Shiller, prêmio Nobel em sua área, publicou seu livro novo "Narrative Economics". Adorei o papo dele com Russ Roberts no podcast EconTalk (sou viciado neste programa, aliás). 

*

"Nós não sonhamos com equações e geometria. Nós sonhamos com histórias", diz Shiller, num papo que vai de Aristóteles (que já falava em narrativa há dois mil anos) a Alfred Marshall, passando pela super Deirdre McCloskey, que advoga que foram as ideias -- mais do que qualquer outra força motriz -- que estiveram por trás das mudanças da modernidade.

 

Se você quiser pensar mais sobre isso, eu sugiro essa apresentação do economista Persio Arida na Academia Brasileira de Letras. Antes de bolar o Plano Real com André Lara Resende, Persio escreveu um paper sobre a retórica (em 1983). Na apresentação na ABL, ele dá alguns exemplos ricos. Meu preferido: "A reforma da Previdência não foi feita porque a trajetória da dívida pública era explosiva e o déficit atuarial era gigantesco, mas para corrigir injustiças sociais". Saber vender uma boa ideia é quase tão importante quanto ter uma.
Para assistir, clique aqui.

Isolamento caseiro


Estamos todos em casa, protegendo uns aos outros do contágio. O home office tem seus percalços se você, como eu, tem crianças em casa (um bom resumo). Mas é muito divertido. Quando não estou trabalhando estou, é claro, com Teo nas maratonas de Peppa Pig (meu personagem preferido é o Senhor Touro), Show da Luna (o episódio em Marte tem a melhor música) e Galinha Pintadinha (esse eu não aguento mais).  

Como disse antes de todo mundo a jornalista sul-africana Nazeefah Wadia, descobriremos que muitas reuniões poderiam ser resolvidas por e-mail. Também descobriremos que muitos museus podem ser visitados virtualmente, como Uffizi, em Florença. Sem humanos, o aquário de Chicago foi visitado por pinguins.  


P.S. A imagem que acompanha essa seção mostra a versão COVID-19 do clássico "Abbey Road" (1969), dos Beatles. É preciso dois metros de distância para evitar a transmissão.  

Detetive médico

 

Entre tudo o que li e assisti sobre o COVID-19, a entrevista de Joe Rogan com o infectologista Michael Osterholm foi, disparada, a mais informativa (e divertida, embora em alguns momentos eu estivesse rindo de nervoso).  Osterholm passou a carreira como um "detetive médico", investigando todo tipo de vírus e especulando sobre a próxima pandemia.

Como combater uma pandemia, segundo ele:

1) Informações corretas precisam ser disseminadas para o público, evitando o pânico;

2) Sistemas hospitalares preparados, com separação clara de áreas para evitar contágio;

 

3) Evitar aglomerações. Evitar aglomerações. Evitar aglomerações;

4) Compreensão dos agentes públicos, em especial as lideranças politicas, de que esse vírus ainda vai nos afetar fortemente nos próximos meses.


*

Ou seja, dizer que o COVID-19 é uma "fantasia produzida pela imprensa" e que as pessoas estão "histéricas" não é o jeito certo de lidar com a pandemia. É apenas o jeito mais irresponsável de lidar com essa pandemia.

Osterholm, no papo com Joe Rogan, vai derrubando mito a mito. Um dos mitos: andar com uma máscara no rosto aumenta a proteção contra o vírus ("isso não faz sentido"). Outra: o vírus é resultado de experimentos militares na China (spoiler: não é). Meu mito preferido: de que o Coronavírus pode ser vencido se você ficar 20 minutos dentro de uma sauna (não anteciparei a resposta de Osterholm -- você terá que assistir para descobrir).


Não foi perguntado a ele se "tomar uma cachaça e depois um banho quente, você fica protegido do Coronavírus", como ouviu esses dias meu amigo Zé Fred em Goiânia. Ainda bem que Osterholm não precisou responder porque eu detestaria ouvir ele negar essa estratégia. 

Ontem, o programa Roda Viva, comandado pela jornalista Vera Magalhães, foi virtual pela 1a vez desde 1986. Depois da entrevista com Ciro Gomes, Vera deu uma ótima mensagem.

BOAS LEITURAS
 

Um dos últimos livros que li no ano que terminou foi "Epifanias", de James Joyce. Não é um autor fácil, por isso levei para uma viagem de trabalho (eu não durmo em aviões e, do alto, sem qualquer forma de interrupção, fica mais fácil encarar leituras que sempre empurramos adiante). Leio sempre com um lápis e faço anotações. Elas facilitam na hora que abro um livro em busca de algo. Trago aqui a nota 27 da bela edição da editora Autêntica:

 

"Débil, sob a noite carregada de verão, através do silêncio da vila que passou dos sonhos ao sono sem sonhos, como um amante exausto que nenhuma carícia comove, o som de casos na estrada de Dublin. Não é tão débil agora à medida que se aproximam da ponte: e num instante, enquanto passam pelas janelas escurecidas, o silêncio é transpassado pelo alarme como se fosse por uma flecha. São agora ouvidos muito longe -- cascos que brilham em meio à pesada noite como diamantes, apressando-se para além dos adormecidos charcos cinzentos para qual fim de jornada -- para qual coração -- levando quais notícias?"

Vale muito a leitura.  

 

P.S. Tirei a foto que acompanha esse segmento Boas Leituras de dentro da Hatchard´s, livraria londrina que está no mesmo endereço no bairro de Green Park desde 1797. Uma joia urbana.

PAUSA
 

A Metropolitan Opera, de Nova York, vai exibir óperas todos as noites, de graça, às 7:30pm (20h30, horário de Brasília). 

Melhor programa não há. Hoje, 17/03, assistirei a "La Bohème", de Puccini. No papel da soprano, a poderosa Angela Gheorghiu. 

Haverá de tudo: óperas russas, italianas, francesas. Você pode colocar como trilha sonora enquanto cozinha, lava a louça ou conta quantos grãos de arroz tem em cada saco (ficar muito tempo em casa tem dessas). 

P.S. Tirei a foto que acompanha esse segmento Pausa dentro de um prédio em Paris, numa viagem de trabalho em outubro de 2019. 

Sobre a newsletter
 

Decidi escrever essa newsletter para compartilhar com amigas e amigos alguns pensamentos e algumas das leituras mais interessantes que venho fazendo. Se você tiver dicas na linha do que encontrou aqui, me mande!

 

Todo dia terminado em sete (07, 17 e 27) mandarei ela para você. A primeira foi no dia 07/03 e você pode ler aqui. 


P.S. A foto que acompanha esse segmento foi tirada por mim de dentro do Ship´s Tavern, uma taverna instalada no centro de Londres desde 1549 (você não leu errado; o bar foi inaugurado um século antes de Hobbes escrever O Leviatã e antes, também, da Revolução Gloriosa).

Obrigado por chegar até aqui. No dia 27 tem mais. 

Compartilhar

Compartilhar no FacebookCompartilhar no X (Twitter)

Mais sugestões e dicas?