English on the second e-mail
- O que é essa fita que parece um band aid na sua testa, entre suas sobrancelhas?
- É um Botox natural.
- Hum, um Botox natural. O que te faz querer fazer um Botox no seu rosto?
- As pessoas sempre diziam que eu estava com cara de brava, séria. Comecei a perceber que essa parte entre minha sobrancelha começou a ficar bem franzida, não quero ter marcas de expressão no meu rosto.
- O que você tem sobre parecer ter uma "cara de brava"? Como você se sente?
- Eu me sinto mal. Minha família sempre me chamou de bruta, grossa, égua que dá coice. Percebo que as pessoas se afastam de mim por causa dessa cara de brava, eu não quero ser assim. Às vezes em festas as pessoas sempre me perguntam: porque você está sempre brava?
- (Apontando pra uma cachoeira gigante que estava na nossa frente eu perguntei). Você acredita que foi um erro da natureza criar um toró de água como esse que corre por essa cachoeira?
- Não. É essa água que mantém a mata viva e a fonte de água da cidade.
- E você acha que foi um erro da natureza criar essa energia da raiva dentro de você?
Isso foi parte de um diálogo que tive com uma mulher que estava me guiando em uma trilha na Chapada. Enquanto a ouvia e fazia perguntas com genuína curiosidade de me conectar com a dor dela por trás daquela "simples" fita na testa, fui inundada por uma tristeza e uma raiva no meu corpo.
Eu senti tristeza porque essa mulher, assim como quase todas no patriarcado, passou a acreditar na história de que a raiva dela afasta as pessoas. Sinto tristeza em me conectar com esse Ser que se poda, se corta e se engessa porque não pode se expressar genuinamente. Sinto raiva porque não aprendemos a usar nossos sentimentos, logo eles saem muitas vezes em explosão, ou em ataque e aí isso reforça que sentir é ruim. Sinto raiva porque hoje milhares de mulheres continuam a ter seu espaço invadido, seus corpos tocados sem consentimento, suas decisões tolhidas porque cortaram de si o poder de sua raiva, como essa mulher que conheci na trilha.
Ela passou a acreditar na história "se eu expressar raiva as pessoas vão se afastar". E então ela passou a fazer de tudo, literalmente, para ser uma pessoa legal, simpática. Passou a dizer sim para coisas que ela não quer dizer sim. Aprendeu até mesmo a colocar uma fita no rosto para ser mais "serena" e não ter marcas de "expressão" (ela ainda não foi em um médico para cortar o rosto para esticar a pele, mas quantas mulheres por dia fazem isso para serem mais "aceitas e amadas"? Você percebe o nível de insanidade???)
Isso pra mim foi um forte símbolo. Quantas vezes na Cultura Moderna você aprendeu a colocar uma fita para tapar a ferida. Anestesiar. Deixar tudo como está. Como você está? Tudo bem. É melhor que tudo esteja bem, caso contrário a mudança pode fazer você pular do seu assento de conforto e tomar uma atitude para mudar o que não está funcionando.
Você aprendeu a ser algo para o outro. Você aprendeu a se encaixar, a ser plástico, rígido. Você foi treinada para ser um falso fantoche de plástico que não envelhece e não tem pelos.
O que faz você "acreditar" em uma história? Evidências.
Ao longo da sua vida você coletou inúmeras evidências para diferentes histórias. A maior parte delas, você possui tantas evidências que pode até ser uma heresia ousar dizer para si que são histórias.
No exemplo desse diálogo, cada momento em que essa mulher expressou a raiva e alguém virou a cara, colou um rótulo nela, a menosprezou, a história "se eu expresso raiva as pessoas se afastam" se tornou "mais verdade".
Essas evidências não são uma ilusão. Elas de fato existiram. De fato ela foi excluída diferentes vezes quando expressou sua raiva. De fato, milhares de mulheres foram mortas por usarem sua voz e seu poder. No entanto, no momento presente é possível criar uma nova história. A partir dessa nova história você pode criar novas evidências e então novas possibilidades na vida.