Minibio por ela mesmo
Sou a Manoela Haase, uma mulher bissexual, feminista, ativista social, formada em Design Visual e estudante de Administração. Apaixonada pelo mundo da criatividade, atuo em áreas como Design Social, UX Design e Design de Superfície. Além disso, sou Cofundadora do projeto Tem que Ter, o primeiro banco de imagens brasileiro voltado à representatividade da comunidade LGBTQIA+. Esse viés social sempre esteve presente na minha trajetória pessoal e profissional, e é a partir do meu entendimento sobre o lugar de privilégio que ocupo, que me dedico a utilizar o conhecimento como ferramenta para tornar o mundo um cantinho mais humano e sustentável.
KAREN Como ser de esquerda e sobreviver no sul maravilha?
MANOELA Diria que é um constante desafio. Sinto-me testada diariamente como se eu precisasse reforçar todos os valores que acredito e porque acredito. Viver no Rio Grande do Sul, Porto Alegre, é lembrar todos os dias que a diversidade incomoda, que a luta pelos direitos humanos muitas vezes é deixada de lado e que o conservadorismo ainda domina. Mas faço das minhas palavras o que a Manuela d'Ávila disse uma vez: “se todos os dias tenho vontade de desistir, todos os dias me lembro das imensas razões que me fazem continuar”. Ser de esquerda no sul do país é sobre tristeza e cansaço. Mas também é sobre resiliência, força mental, luta, motivação e muita esperança. Cada um tem seu papel dentro da sociedade e eu sempre levo comigo o lema de que fazer uma pequena parte já é mudar o mundo. Por isso sempre me dediquei a projetos que pudessem impulsionar pautas sociais e trazer benefícios para a sociedade. Acho que a maior missão de ser esquerda no sul do Brasil é lutar constantemente para furar bolhas, tirar as pessoas da sua zona de conforto e fazer refletir, gerar debates construtivos.
KAREN Fala mais sobre furar bolhas? É difícil? O que você acha que é?
MANOELA Furar bolhas é tentar interagir e dialogar com pessoas que pensam diferente. É, no meu caso, conseguir me inserir em debates de pessoas com pensamentos conservadores e que, normalmente, têm uma dificuldade gigante em ouvir/aceitar opiniões diferentes das delas. Como falei antes, a diversidade incomoda. E aqui digo diversidade no sentido mais amplo da palavra. Vejo o diálogo como uma ferramenta muito potente e procuro trabalhar isso nos meus projetos de forma a não ser invasiva, mas, sim, tentar dialogar de forma sensitiva e empática. Por mais difícil que seja, em algumas situações, é a forma com que colho os melhores resultados.
KAREN Você falou sobre se sentir testada. Isso não é fácil... As pessoas gostam de testar os limites umas das outras. Uma mesquinharia e falta do que fazer sem tamanho, né?
MANOELA Nossa, total! Parece que não tem mais o que fazer… Precisam ficar cuidando da vida alheia.
KAREN O que é ser de esquerda?
MANOELA No sentido mais amplo, para mim, ser de esquerda é lutar pela igualdade, seja ela de gênero, racial, de classe… Ser de esquerda é ter valores que prezam, acima de tudo, pelos direitos sociais. Ser de esquerda é, mesmo pertencendo a uma classe privilegiada, entender e lutar pelo bem-estar do povo, daqueles que são a maioria no Brasil, mas que carecem de muitos insumos básicos de subsistência. Ser de esquerda é ter um olhar humano diante da sociedade. Ser de esquerda é ter esperança de um país mais justo e menos desigual. Ser de esquerda é trazer dignidade ao cidadão.
KAREN A luta social, de esquerda, se confunde com a luta pela diversidade?
MANOELA Não diria que se confunde, o ser de esquerda inclui a luta pela diversidade entre suas lutas. Como disse anteriormente, eu vejo o movimento de esquerda lutando pelas igualdades, com um potencial muito grande de defender as minorias e os invisibilizados. E é ai que a luta pela diversidade entra e se encaixa. Somos uma voz potente que se reverbera e ganha força a partir da voz de líderes e de políticas públicas defendidas pela esquerda. Mesmo sabendo que estamos mergulhados no capitalismo, um sistema que por si só já é desigual, existe uma consciência bem estabelecida, dentro da esquerda, sobre a importância dos movimentos sociais e o impacto deles na sociedade para minimizar os danos e incentivar a busca pela igualdade. Em resumo, os dois movimentos se complementam por lutarem, no final das contas, por esses objetivos em comum cada um dentro do seu escopo e proporção.
KAREN Você questiona o consumismo promovido pelo capital? Ainda mais trabalhando na área de publicidade...
MANOELA O capitalismo é um sistema extremamente questionável pela dinâmica totalmente enviesada de tornar os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Mas, vivendo dentro dessa realidade, entendo que nosso papel enquanto ativistas sociais é tentar quebrar alguns padrões. E por atuar na área de comunicação, encontrei na publicidade um gap gigantesco pela forma estereotipada e utópica que as propagandas são construídas. E acredito que essa seja não a melhor nem a única solução, mas uma porta de entrada para muitos outros debates tão pertinentes.
KAREN Me fala alguma coisa que me tire UM POUCO essa imagem de pouco ética que tenho da publicidade. Só vender, só vender. Só consumir. Só consumir...
MANOELA Esse comentário sobre a publicidade é muito interessante. O produto tem todo um período de concepção, de produção, de qual necessidade ele vai suprir no usuário e aí a publicidade ela vem lá no final para divulgar esse produto, esse serviço para a sociedade. Existem, acho eu, dois principais pontos de vista, muito interessantes de serem destacados. Acho que o primeiro deles é uma questão que eu fiz um estudo, inclusive, agora na pandemia... O WGSN, inclusive, divulgou uma tendência muito forte da população brasileira em começar a consumir muito mais das Comunidades. Então, está se tendo um olhar muito mais cuidadoso de consumir de artistas locais, de feiras locais, enfim, esse movimento de olhar para os microempreendedores, para os empreendedores autônomos. Eu acho que foi muito um movimento que a pandemia, principalmente, trouxe.
KAREN Nisso de questionar o modelo das grandes indústrias entra também o artesanato...
MANOELA Eu falei ali em cima da WGSN, uma plataforma que traz muitas tendências do mundo. Traz essa habilidade na área do pequeno empreendedor, dos trabalhos artesanais do artista da comunidade. Esse olhar mais humano que começou a se construir está sendo muito forte e eu acho que nesse espaço o artesanato entra e ganha um espaço muito interessante. As pessoas começam a se voltar para a origem, para aquilo que tem de fato um significado, aquilo que tem uma história por trás. Algo onde existe um valor em cima daquele produto. São importantes essas ações que geram esse tipo de impacto na sociedade. Às vezes, não na sociedade no sentido mais amplo, mas geram impacto para família, no meu bairro, na minha cidade... Faz uma economia circular.
Olhar a publicidade dentro desse viés é muito importante. Eu acho que a publicidade é um grande, é um potente amplificador. Ela traz uma voz para esse capital que ainda é pequeno, mas que está ganhando força. São esses microempreendedores que estão aí e que fazem um trabalho muito legal, né? Brechós... Movimentos sustentáveis, comidas saudáveis... Tem um movimento por trás que está vindo e é muito interessante. A gente deve ficar atenta. Eu vejo a a publicidade nesse foco muito importante como um potente porta-voz mesmo dessas pessoas que estão querendo construir esse mundo com esse olhar mais humano.
Existe outro viés também muito importante de a gente pensar que são as grandes indústrias, que a gente sabe que englobam um capital gigantesco, que a gente sabe também que acabam trazendo aí um lucro para uma parte muito específica da população, uma pequena parte. Apesar de a gente questionar o modelo dessas grandes indústrias, eu acho que existem nelas também um potencial muito forte de quebrar estereótipos.
KAREN Você tem exemplos?
MANOELA Muitas vezes, um pequeno empreendedor ali não vai ter um impacto tão significativo na sociedade e quando tu fala de grandes indústrias, eu como uma atuante da área de comunicação, como designer, vejo a publicidade nessas grandes indústrias, como falei, como uma porta de entrada para começar a se discutir pautas sociais. Pequenos passos. Mas, por exemplo, no momento em que tu coloca lá a propaganda com maior diversidade, onde tu coloca pessoas LGBTS, pessoas negras, onde tu inclui pessoas com deficiência, isso reverbera muito mais, né? Tu começa, mesmo que de forma subliminar, a trazer esses discursos, tu começa a introduzir de forma não direta, mas no subconsciente. Tu começa a construir uma consciência social nas pessoas, tu começa a normatizar pautas que hoje ainda precisam ser muito discutidas.
O meu trabalho de formiguinha aqui, enquanto ativista social e como uma militante LGBT, é muito esse. Eu entendi que o meu papel hoje pode ter um impacto direto na publicidade dessas empresas. É claro que isso, de novo, é apenas uma porta de entrada... Eu acho que existe toda uma estrutura por detrás que, sim, deve ser debatida e, sim, deve ser pensada, mas eu entendo que também são degraus, né?
KAREN Fala um pouco do projeto Tem que Ter...
MANOELA Essa minha resposta anterior já faz um gancho muito legal com um projeto que eu desenvolvi junto com as minhas amigas do banco de imagens Tem que ter. Acho que foi muito dentro desse objetivo. Hoje quando se vai fazer propagandas, publicidades ainda, tu utiliza-se, consome muito de bancos de imagens e são bancos de imagens extremamente estereotipados e eu falo isso com propriedade porque eu fiz todo o meu trabalho de conclusão de curso estudando esses bancos e entendendo o contexto deles. Coisas simples assim... Se tu vai pesquisar ceias de natal, se tu vai pesquisar almoços, casais... Existe muito um estereótipo de família margarina. Todo mundo loirinho de olho claro, branco. Até que ponto isso é a representação do nosso Brasil? De forma alguma! A gente sabe a miscigenação que existe no nosso país. A diversidade a cultura tão rica que existe aqui dentro...
Linkando essas percepções, esses problemas, eu e as minhas colegas atuantes no meio da comunicação, vimos a oportunidade de criar esse banco, né? O primeiro banco brasileiro de imagens representativas da comunidade LGBT. Isso é muito forte, né? Muito impactante a gente conseguir trazer por meio das imagens essa maior representatividade.
KAREN Como o banco de imagens se mantém?
MANOELA A gente tem uma das fundadoras, que é a Patrícia, ela é fotógrafa. Inclusive tem várias imagens, feitas por ela, que estão disponibilizadas no banco, mas a gente tem também parcerias. Fotógrafos que vêm nos procurar, que têm que fazer ensaios, coisas do tipo. Num primeiro momento, a gente prezou muito por fazer ensaios que a gente conduzisse, que a gente fizesse a direção de arte, que a gente montasse e tudo mais. E talvez num futuro abrir para fotógrafos fazerem fotos e isso passar por uma curadoria nossa para daí disponibilizar no site, sabe? Mas, por enquanto, a gente preza sempre que os fotógrafos nos contatem e a gente faça essa produção dos ensaios junto com eles. E também fazer ensaios com a nossa componente do grupo que é a Pati.
KAREN Mas, de qualquer forma, o consumo exagerado continua aí. E tanta gente com fome...
MANOELA Não acho que propagandas mais inclusivas ou coisas do tipo vão diminuir essa compra exacerbada. Afinal de contas, a publicidade é voltada para isso. A ideia da publicidade é vender mais. Conseguir vender da melhor forma o teu produto para que o cliente escolha o teu produto e não o do concorrente. Eu não acho que isso vá impactar no consumo diretamente. Eu, enquanto designer, enquanto comunicadora não consigo atuar diretamente nesse cenário. Eu entendo que as empresas vão continuar fazendo publicidade. Então... Como eu posso usar isso ao meu favor, digamos assim... A favor da sociedade, a favor da diversidade, da inclusão, né?
Inclusive, eu trabalhei durante algum tempo num time de recomendação... É um time bem técnico de tecnologia onde, na verdade, hoje a gente vê que a publicidade, muitas vezes, acaba tendo um impacto até pequeno na questão de efetivar compras. Ela serve muito mais como uma divulgação dos produtos e coisas do tipo do que de fato para consumar a venda. A questão da recomendação é aquela coisa de ficar o tempo inteiro mostrando um produto... Sabe aquela coisa repetitiva? Isso aí é que está fazendo de fato as pessoas começarem a fechar as compras. É até um tipo de propaganda diferente daquela que a gente estimula a partir do banco de imagem, né? O banco de imagem é mais aquela coisa televisão... E as empresas estão usando muito mais o recurso de recomendação, de personalização do produto para de fato efetivar as compras. Eu acho que a publicidade que a gente estimula é muito aquela que apresenta o produto, uma coisa até o mais lúdica, né? Não aquela coisa persuasiva que tu fica ali na insistência... Coloquei no carrinho e não fechei ,então, eu vou lá e te dou cinco por cento de desconto e aí volto a te oferecer, sabe? Aquela publicidade maçante, massiva.
KAREN Os resultados com o banco de imagens de vocês estão sendo bons? Como vocês começaram?MANOELA Foi um projeto em que a gente se inscreveu num edital. A gente conseguiu um recurso mínimo ali para colocar o projeto de pé. Foi realmente com muita força de vontade nossa... De acreditar muito, de querer muito fazer dar certo. Foi um projeto que simplesmente bombou. Se você procura hoje na internet, no google, é um projeto que apesar de ter sido criado aqui no Rio Grande do Sul, se espalhou pelo Brasil. A gente fez diversas reportagens entrevistas, a gente fez muitas palestras também em empresas... Na verdade, o banco hoje é um produto físico onde a gente disponibiliza imagens gratuitas para as pessoas consumirem. É totalmente livre para quem quiser utilizar. Isso também ajuda a furar as bolhas que eu tinha comentado anteriormente porque tu disponibiliza sem uma barreira que é o dinheiro.E a partir disso, tu consegue ter uma circulação muito maior das imagens.
A gente viu as imagens sendo utilizadas nos mais variados tipos de veículos, em post de instagram, em reportagens, em propagandas. Foi muito rico ver esse trabalho se espalhar. Empresas começaram a nos chamar, agências de publicidade começaram a nos chamar para dar palestras, para debater esses assuntos dentro das empresas. A gente também está fazendo um caminho de dentro para fora: das pessoas, das empresas começarem a se questionar. Qual é a nossa diversidade hoje dentro da empresa para conseguir construir propagandas mais diversas? Então vamos trazer essa inclusão para dentro porque a gente consegue fazer um trabalho muito melhor de dentro para fora. Eu acho que o nosso resultado vem muito dessa visibilidade que a gente trouxe, dessa procura que a gente viu na área da comunicação, de uma forma geral. A gente tem hoje um programa que marca os downloads do nosso site e a gente vê que já teve downloads em todos os estados do Brasil. Essa é uma coisa muito grande. Não ficou restrito ao local onde o projeto surgiu. Essas demandas, esses debates... A gente vê que as pessoas estão querendo saber mais sobre diversidade, querem trazer essas pautas para dentro das empresas. A gente vê que o movimento pode ser devagar, mas tá acontecendo. Talvez não da forma ainda como a gente gostaria que já estivesse ou que deveria estar, mas tá acontecendo, né? Fazer uma pequena parte já é mudar o mundo. É importante sair ali só do nosso mundo em que LGBTs só conversam com LGBTS, negros só conversam com negros. É importante a gente começar a se falar, para enfim atingir uma parcela mais complicada e conservadora da sociedade.