Minibio por ele mesmo
Nome: Micael Eliabe Severino
Idade: 30 anos
Acadêmico de Ciências Biológicas na UFPR
Sou etnofotógrafo
KAREN Por que você veio para Curitiba?
MICAEL Eu saí da minha comunidade pra tentar um curso superior na capital do PR e tenho tido muita dificuldade financeira. Virei motorista de app pra complementar minha renda, mas mesmo assim tem sido muito difícil. Os valores de mercado e combustível têm subido muito e ,querendo ou não, tem muito preconceito por ser indígena, onde quer que eu vá.
KAREN Como você sente o preconceito?
MICAEL Nos olhares das pessoas.
KAREN Sim... Com quantos anos você saiu da sua aldeia? Onde ela fica?
MICAEL Eu saí com 28. Ela fica no município de Santa Amélia-PR. Aldeia Laranjinha.
KAREN O que você mais sente falta da sua aldeia?
MICAEL Família. Saí sozinho.
KAREN Como você faz para sobreviver aos olhares das pessoas?
MICAEL Tento ignorar e não dar importância, mas isso é difícil.
KAREN Você chegar a falar alguma coisa?
MICAEL Não.
KAREN Você acha que ser de esquerda pode ser uma forma de se fortalecer no meio do preconceito?
MICAEL Sim, com certeza, até mesmo por Curitiba ser maioria de direita.
KAREN O que é ser de esquerda pra você?
MICAEL Pra mim é lutar pelos nossos direitos, que é a educação que vem sendo sucateada.Lutar pelas nossas terras, para serem demarcadas. No geral, seria o lado dos menos favorecidos que sofrem com o preconceito, falta de emprego, os que lutam por uma vida digna.
KAREN Você tem encontrado pessoas que se preocupam com essa luta aqui em Curitiba?
MICAEL Sim, tenho amigos nos sem-terra (MST). Eles moram na Lapa.E parentes indígenas que fizeram uma retomada em Piraquara.
KAREN E como você conheceu os sem-terra?
MICAEL Eles fizeram uns trabalhos na retomada indígena em Piraquara (Região Metropolitana de Curitiba). E a partir daí passei a ter contato com eles.
KAREN E como está a situação em Piraquara?
MICAEL Eles conseguiram conquistar o território ano passado. O parque hoje é um território indígena.
KAREN Como é o nome do Parque?
MICAEL Hoje chamamos de território indígena. Mas é Parque Estadual Metropolitano de Piraquara. Ainda não colocaram placa nova.
KAREN Que bom que conseguiram retomar. E você sabe se eles estão conseguindo se estruturar lá?
MICAEL Tem muito que melhorar lá, mas devagar estão construindo umas casinhas.
KAREN O MST está ajudando a plantar também?
MICAEL Sim, alguns sempre estão presentes nos multirões.
KAREN Multirões para quê?
MICAEL Pra plantar árvores nativas, frutas.
KAREN E na sua Aldeia Laranjinha, como está a situação?
MICAEL Minha comunidade já tem uma estrutura por ser bem antiga. Mas como toda comunidade, sempre tem uma dificuldade.
KAREN Na sua qual é?
MICAEL Na minha, por ser um território pequeno, estamos lutando pra conseguir nos automanter porque é um território quase todo desmatado. Também lutamos pra formar profissionais para trabalharem no lugar dos não indígenas. No posto de saúde já conseguimos. Falta a escola.
KAREN Tem médico e enfermeiro indígena lá?
MICAEL Sim, lá temos uma médica que se formou há pouco tempo e aí completamos toda área da saúde. Mas já tínhamos enfermeira padrão, dentista, técnicos de enfermagem.
KAREN Todos indígenas?
MICAEL Sim, todos da minha comunidade.
KAREN Que coisa boa de ouvir... De ler, quero dizer... Rs. Espero que vocês consigam algum parente pra dar aula também. Queria falar um pouco mais de Piraquara... Logo que você chegou em Curitiba você já foi procurar o pessoal de lá?
MICAEL A maioria deles veio da minha comunidade. Fui algumas vezes lá. É muito longe.
KAREN E como você conseguiu se estruturar pra ser uber... Carro, conciliar a faculdade e tal...
MICAEL Na verdade não consegui conciliar, estou só trabalhando pra me manter e com ideias de voltar pra minha comunidade por conta do aumento do combustível.
KAREN Você está conseguindo pagar o carro?
MICAEL Tá bem difícil, mais um dos motivos.
KAREN Você acha que vai ter que entregar o carro? Tem muito motorista de aplicativo fazendo isso. O número de trabalhadores por aplicativo deu uma boa reduzida, né?MICAEL Sim. Não sei se vou entregar.
KAREN Acha que vai conseguir voltar pra comunidade e encontrar algum trabalho?MICAEL Não sei sobre o trabalho, mas lá não terei que pagar aluguel, água e nem luz.
KAREN Sim... E você acha que tem usuário pra continuar sendo motorista lá?
MICAEL Lá na minha cidade não. É uma cidade de 3000 habitantes.
KAREN E a faculdade? Está desistindo?
MICAEL Na verdade quero transferir pra alguma universidade mais próxima da minha comunidade.
KAREN E como é a vida na universidade daqui?
MICAEL Eu comecei em tempo de pandemia, e agora estou todo perdido. Acho que comecei muito mal por conta disso...
KAREN Por que você escolheu Ciências Biológicas?
MICAEL Eu escolhi o curso de Ciências Biológicas pelo projeto que eu participo... Ecologia de Saberes...
KAREN O que é o Ecologia de Saberes?
MICAEL O projeto Ecologia de Saberes é um projeto que trabalha com as comunidades indígenas, em que damos apoio às comunidades na construção do PPP (Projeto Político Pedagógico). Fazemos aulões preparatórios para o vestibular indígena. E damos apoio também aos jovens em disciplinas que eles têm dificuldades na escola.
KAREN Como você dá o apoio na prática?
MICAEL Ajudamos os alunos nas construções, escrevendo, auxiliando na produção.
KAREN Você está acumulando experiência... Se quiser, vai poder dar aula na sua comunidade, né?
MICAEL Quando me formar sim.
KAREN E a fotografia? Quando você começou a se interessar?
MICAEL Comecei quando entrou esse governo. Não só eu, mas muitos indígenas. Esse governo já começou dizendo que não seria demarcado mais nenhum pedaço de terra para os indígenas.
KAREN E aí vocês começaram a fotografar as terras?
MICAEL Não só as terras, mas passamos a usar as redes sociais como forma de luta. Transmitimos noticias que são omitidas nas televisões e nos jornais. Notícias sobre o que acontece nos territórios indígenas do Brasil todo. Inclusive hoje (25.06) teve um ataque de policiais em MS. Tiveram duas mortes. De indígenas Kaiowa.
KAREN Muito triste e revoltante. E na sua aldeia. Como está a situação?
MICAEL Na minha aldeia não tem violência desse tipo. Apenas algum preconceito como já falei, que se encontra em qualquer cidade que se vá.
KAREN Você é Guarani Nhandewa. Pode me dizer as características do seu povo?
MICAEL Tem Guarani-Nhandewa, Guarani-Kaiowa, Tupi-Guarani, Avá-Guarani e Guarani-Mbyá. Com relação à língua, muda um pouco a pronúncia entre nós. E os guarani são mais espirituais. Os artesanatos são mais animais entalhados na madeira.
KAREN E como o pessoal faz para comercializar? Nesse mundo tão industrializado as pessoas valorizam o artesanato?
MICAEL Artesanato indígena comercializado por nós nunca dá valor, mas quando um branco revende ai é diferente.
KAREN Porque você acha que isso acontece?
MICAEL Preconceito mesmo.
KAREN Tem artesãos no seu território?
MICAEL Tem sim.
KAREN São muitos? Como eles aprenderam a fazer?
MICAEL Não sei quantos têm ao certo. Aprenderam com os parentes mesmo.
KAREN Vocês conseguem vender?
MICAEL Saímos vender em feiras.
KAREN Tem algum animal que você gosta mais?
MICAEL No geral, todos animais são sagrados pra nós. Tanto os animais quanto as floresta e rios. Eles nos protegem e protegemos eles também.
KAREN Mas tem algum animal que você gosta mais?
MICAEL Eu gosto da onça preta.
KAREN É? Por quê?
MICAEL Pra mim é um símbolo de força e proteção.
KAREN Aonde a gente acha a onça preta?
MICAEL Só do Mato Grosso pra frente aonde tem mais conservação de matas nativas.
KAREN Quando você diz que ela representa força e proteção, como é isso para você? Como você recebe isso dela?
MICAEL Sentindo espiritualmente.
KAREN Como se fizesse uma conexão?
MICAEL Me fala um pouco de você. Não vejo foto sua aqui. Acho que você não salvou.
KAREN Salvei sim... Quase não conheci meus avôs. Só uma avó. Isso me faz muita falta. Acho que é por isso, também, que me aproximo das culturas indígenas. Pela importância que vocês dão aos antepassados. Ultimamente, estou desenvolvendo o Caixolá lá linha, um projeto em que faço gorros andinos artesanais inspirados nos indígenas mapuches. A cada cinco peças vendidas, feitas com lã de descarte, eu doo uma para um carrinheiro do lixo reciclável. Se quiser, dá uma olhada nesse link: www.caixolalalinha.com.br/about-3-1
Por isso perguntei sobre artesanato. E estou perguntando tantas coisas porque me interessa genuinamente falar com pessoas como você. Que tenham um outro tipo de relação com o mundo e com a natureza... Falar com você está sendo uma das melhores e mais agradáveis entrevistas que já fiz. Faz tempo que tinha perdido o interesse em fazer entrevistas no padrão mídia hegemônica. Meio que estava querendo esquecer o jornalismo por conta dos absurdos que a gente vê na mídia. Resolvi fazer escritos poéticos. Mas, nessas últimas semanas me deu vontade de conversar com pessoas feito você. Muito obrigada mesmo por responder.E olha que a entrevista está sendo por whatsapp...
MICAEL Pessoalmente sou muito tímido. Me saio melhor escrevendo... Eu estou terminando de fazer um arco. Trouxe o marfim lá da minha aldeia.
KAREN Quando você falou marfim, numa leitura rápida, me veio na cabeça o marfim dos elefantes (rs). Pensei. Será que temos uma África aqui? Mas aí, lembrei da madeira marfim... rs
MICAEL Hahaha
KAREN Tem muito marfim lá na aldeia? Como está o plantio lá?
MICAEL Meu cacique está vendo um projeto de reflorestamento. Não tem muito marfim, não. É bem pouco, mas tomamos cuidado ao cortar, pra ele brotar depois.
KAREN Voltando à onça preta... Mesmo estando fora da sua aldeia, mesmo estando longe dela, você consegue senti-la?
MICAEL Exatamente, é uma conexão que temos com a natureza, um sentimento, uma ligação com animais, floresta e rios.
KAREN Pode me mostrar uma foto do arco que você tá fazendo? (abaixo, calma. Curte o texto)... Que grande... Aí é uma oficina?
MICAEL É na casa de um amigo que tem uma minimarcenaria. O arco vai ficar envergado. AÍ vou fazer as flechas ainda também. O arco tem quase minha altura.
KAREN Achei que o arco tinha as duas pontas iguais. Me explica. Não tô entendendo...
MICAEL Mas tem. Talvez na foto não esteja aparecendo. É que ela não está terminada. Vou tentar fazer mais um pouco amanhã de manhã (29.06) lá na Agrárias da UFPR, no gramado.
KAREN Você podia pedir para alguém tirar uma foto sua trabalhando, né?
MICAEL Tenho vergonha.
KAREN ... Você usava arco e flecha na sua comunidade?
MICAEL Quando tinha brincadeiras.
KAREN Você é bom nisso?
MICAEL Acho que mai ou menos. Quando terminar preciso praticar um pouquinho pra testar o arco e as flechas.
KAREN Mas tem que ter força pra vergar, heim?
MICAEL Um pouquinho...
KAREN Se conseguir uma foto de corpo inteiro amanhã... E que tipo de fio você usa para vergar?
MICAEL Vou tentar.
Abaixo fotos enviadas pelo Micael e um videozinho que eu montei...
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