Diferenciação, a nossa
O cérebro foi-se aperfeiçoando para responder a eventualidades, segurando-nos à vida. Uma escala de tempo alargado fez dele uma diferença ontológica. Foi violentamente confrontado e tombou deuses, consubstanciando-se. Mediu-se com o fogo metendo ferro, sulcou por dentro dos rochedos, sentiu aplacar-se a massa dos oceanos. Converteu sons distorcidos em linguagem rústica, criação sem raiz natural — Ésquilo traduzindo os uivos de Prometeu.
O Sol matizando Atenas, sublime cognição lustrada pelo mármore. Seria um encefalograma espelhando luz nos batentes do Pártenon. O Mediterrâneo fez-se corrente sanguínea irrigando ilhas no Egeu, pontos mentais cartografados, a viagem remada pelo dorso de homens-cavalo.
Aquiles trovejou a guerra, ele que rachou, penetrou as muralhas. Sentiu nos dentes as lágrimas. Revelou-se para uns o medo, revelada para outros a insolência. Em sangue o hímen de Troia. O cérebro rodou, deixou avançar o Tempo e Aquiles consolidou-se uma sombra — transposição que iniciou a literatura.
O cérebro foi uma máquina de guerra malhando territórios. Compareceu a todos os encontros, não excluindo o corpo da própria morte, deu-lhe presença sublimada em imaginários vultos — fez o Nada. O cérebro será o tesouro da humanidade, centro e potência cosmogónica.
QUAL É ENTÃO O COMPOSTO DA MERDA A QUE A HUMANIDADE ESTÁ PRESA, E QUE É A SUA PRÓPRIA MERDA? Náusea de Bukowski, poeta de caverna.
Poderíamos silenciar a resposta expandindo-a no vazio, cabeças dobradas por Rodin — formalidade que aqui se ajustaria. Ao invés, avançamos lúcidos a convicção DE SER A MASSA ENCEFÁLICA O COMPOSTO QUE DESESPERA A HUMANIDADE numa vontade perversa sua, e, em última instância, cruel muito para além. Figurativamente, a merda escorrendo por vias diplomáticas. O ser humano será então um animal político, é dizer, o cinismo em translação — não me fodam, todos sabemos que o Mal é necessário!
Falências e disfunções, vazamentos que o cérebro, ele mesmo, não quer estancar. Nietzsche foi ao fundo nos olhos de um cavalo: poderoso, chorou como um homem poderá chorar. Marx lavrou o chão curvado sob o peso do arado, alfaia comunitária; todos calaram o ressentimento, silêncio fundo, apenas um arado. Breton ejaculando de amarelo as ondas, ele, que fendeu a carne envelhecida, com a luz apartando as junções do crânio. Corpos que foram espantalhos adornados de excelência cognitiva.
Teríamos ainda músculo para, num suposto começo remontado, suportar o embate de uma tempestade arcaica? Despejar dos pulmões o sopro de Deus, os dentes mordendo raízes, uma, outra vez. Bater as palavras na sonoridade cardíaca sem vasos subindo à transcendência.
Que as espécies seriam nutridas do mesmo chão, sem celeiros, sem mastins rondando os celeiros. Distribuir a seiva não carece de acordos parlamentares e será censurável usurpar descaradamente. Seja já bastante a indecência.
Arremessadas as vestes, deixemos a transpiração descer inteiramente a espinha. Bailemos de largo nos campos militarizados onde os mortos se levantam sob um carregado azul do céu. Os ideais abateram, são detritos, detritos são detritos não são livros _____________________ que do escuro de cada noite apareçam carrancas de asinino aspeto, o reviralho das cabeças. SIM, O CÉREBRO COME OS PRÓPRIOS FILHOS.
Vídeo: Tânia Cadima
Som: Carlos Santos
Texto: Mário Trigo