Minibio por ele mesmo
Jeferson Costa é músico, doutorando em filosofia pela PUCPR e pela Università degli studi di Ferrara (UniFE). Aprendeu música na capoeira e atualmente atua como membro do Samba do Sinticatis, um coletivo que pesquisa o samba e a sua história. Além disso, é membro da Linha de Pesquisa Filosofia da Psicanálise do PPGF-PUCPR e do Instituto de Filosofia Africana (IFA).
KAREN Como sobreviver sendo de esquerda no sul maravilha?
JEFERSON Nasci aqui em Curitiba. Ali no bairro Cajuru, na zona leste da cidade. Em poucas palavras, o que é ser de esquerda no nosso sul maravilha: é um ato de constante resistência e de renovação de métodos, meios, alternativas para seguir resistindo, pois nós vivemos na capital do Paraná, uma capital que passa uma imagem de cidade europeia. É uma cidade branca, uma cidade elitizada, né? Ou seja, isso está no discurso do capital, de Curitiba, enfim. E ser esquerda é um ato de resistência, primeiro, por sobreviver, né? Sobretudo vindo de região periférica, ali longe do centro e dos bairros nobres. Sobretudo um ato de resistência também no sentido cultural mesmo. Há uma negação, por exemplo, da existência de samba em Curitiba.Há um apagamento do protagonismo dos povos de origem africana e até mesmo dos povos originários paranaenses aqui na capital.
E, do ponto de vista da cultural, é uma ato de resistência, pois, ainda que haja uma crescente presença de elementos, de dinâmicas, de manifestações da cultura africana, de culturas de povos oprimidos, da cultura nordestina, cultura indígena, ameríndia, entre outras, ainda que haja esse crescimento, ainda há um discurso que nega a existência dessas manifestações como coisas inerentes da cidade. Acaba sendo até um tanto quanto exótico do ponto de vista de quem vê de fora essa capital branca, elitista.
KAREN Como você reage a isso? Como é essa resistência no dia-a-dia?
JEFERSON Bom, eu sou um estudante de filosofia. Atualmente, estou no programa de pós-graduação em filosofia na PUC-PR, fazendo meu doutorado porque eu acredito que a educação é uma ferramenta para isso. Educação, ocupação de salas de aulas, a conversa com as pessoas mais jovens para dar essa conscientização e propor, pelo menos, uma sensibilização a respeito disso, evitando que se desenvolva essa espécie de daltonismo que as lentes da perspectiva elitista curitibana levam as pessoas a sofrer. Parece que, de fato, há uma lente que se coloca na frente dos olhos das pessoas e não permite que elas enxerguem que existem outras expressões que só não estão assumindo protagonismo por conta de um discurso opressor.
Então, como eu tenho feito na prática... Vou na busca de me especializar, de cada vez mais adquirir informações, de adquirir referência a respeito disso na filosofia e demais produções intelectuais que estão dialogando com a filosofia. E, via cultural, é no samba, frequentando rodas e propondo uma pesquisa, uma sensibilização do público porque isso é algo de difícil controle e mensuração...
Para as pessoas que querem saber do movimento é uma conscientização da proposta do samba na sua origem. Nós fizemos uma pesquisa em relação aos sambas mais antigos, na décadas de 20 a 60. A proposta desses sambas é na linha da conscientização. Inclusive, tinha uma função pedagógica sobre o que é a favela, por exemplo. Aí tem um samba do Padeirinho que expressa isso de maneira tão didática que não precisa por uma vírgula, acrescentar nenhum ponto porque já demonstra que é uma proposta educativa a respeito de como surgiu a favela. Entre outras coisas, né?
Poderia dizer que muitos sambas cumprem com essa função didática, ainda que seja uma proposta educativa pedagógica informal, têm essa conscientização. Conscientização, por exemplo, a respeito dos heróis negros, heróis não oficiais na história oficial do Brasil como Chico Rei, um dos primeiros abolicionista do Brasil, um dos maiores inclusive. Ele foi o rei do Congo promoveu a abolição de vários de seus pares quando aqui esteve por razão de sequestro da sua terra natal... Zumbi dos Palmares...
É importante propor que o samba seja compreendido não apenas como um momento de diversão, mas também como essa prática de resistência que dura anos e que nos deixou um legado. Vale a pena continuar com essa função didática pedagógica educacional para mostrar a opressão aos povos que não pertencem às camadas sociais da elite no Brasil.
KAREN Tem muito samba de esquerda, né?
JEFERSON Tem sambas e sambistas que fizeram parte do Partidão e mantiveram uma aliança estreita com a manifestação do comunismo no Brasil. São personalidades como Paulo da Portela, um dos maiores sambistas da história e cujo nome, após a morte, foi um dos mais mencionados em sambas para homenageá-lo. Assim que ele desapareceu, várias sambistas, espontaneamente, manifestaram o seu louvor ao nome de Paulo da Portela por ele ser um organizador social e ter os ideais que tinha.
Fora isso, temos os sambas do Nelson Sargento, Samba do Operário, uma aula a respeito de Marxismo. A gente consegue trabalhar mesmo em sala de aula conceitos como alienação, como mais-valia, conceitos marxistas... Isso a gente pode trabalhar nessa letra de samba de Nelson Sargento em parceria com Cartola. Tem o samba Favela, do Padeirinho, nascido lá na década de 1920, que fala a respeito de como, após a Abolição da Escravatura, após a promessa que o estado fez a quem fosse combater nas guerras que estavam acontecendo (seja a guerra contra o Paraguai, seja a Balaiada). Houve a promessa de terras e essas terras nunca forma entregues, de modo que aqueles que se alistaram e cumpriram com o que havia sido acordado, foram se juntando nos morros. São famílias oriundas desses guerreiros que se alistaram e não obtiveram a paga em relação ao trabalho. Houve, de certo modo, um golpe. Foram enganados pelo estado.Padeirinho nos auxilia a pensar nisso, a pensar essa situação geográfica que separa a elite de todas essas camadas oprimidas.
Esse fato já nos permite pensar em Os Condenados da Terra, de Franz Fanon, psiquiatra que também é abraçado pela Filosofia e pelas demais áreas do saber de humanidades. Ele teve essa constatação de que o Apartheid não é uma coisa localizada, não foi uma coisa localizada na África do Sul, mas esteve presente em vários contextos onde houve a colonização, onde houve essa opressão colonial, essa divisão geográfica, essa cisão de mundos compartimentados se fazendo presente, né?
Então, o samba, quando contextualiza a favela nos faz refletir a respeito disso. Há também os vários sambas que falam a respeito da violência policial. Tem sambas daquela época que falam de um conceito filosófico hoje super atual, o conceito de racismo religioso. Aí a gente pode mencionar compositores como Heitor dos Prazeres, Benedito Lacerda que falam disso tudo.
KAREN Sim... Super atual esse conceito de racismo religioso.
JEFERSON Racismo religioso acaba sendo um conceito desenvolvido para servir como um referencial e tem um significado importante. Acontece no Brasil desde que houve a colonização violenta por parte dos portugueses. O racismo religioso, em linhas gerais, é aquele que não contempla nenhum tipo de prática religiosa, além daquelas de origem europeia. Não compreende nenhum tipo de prática religiosa como sendo de fato uma prática religiosa que tenha uma ligação com o sagrado e que, portanto, mereça respeito. É uma prática que se desenvolveu a partir de autoridades cristãs. A gente pode mencionar aqui o padre Antônio Vieira que nos seus sermões, inclusive para a população escravizada. Ele mencionava, fazia uma analogia, uma metáfora do corpo negro - que sofria ali com as chibatadas - com o corpo de Cristo na Paixão. E aí vem todo um discurso que tinha muito mais de ideologia colonizadora, dominadora do que, propriamente, de religião. O que se queria dizer é que eles trabalhando de maneira forçada conseguiriam a redenção dos céus. Isso acaba sendo uma dimensão do racismo religioso.
A gente também pode mencionar tudo aquilo que envolve as práticas de religiões de matriz afro no Brasil. Toda essa perseguição que há também com elementos culturais como o samba e a capoeira (ao mesmo tempo em que são uma expressão distinta não deixam de ter uma ligação). Essa perseguição acaba sendo uma dimensão do racismo religioso. A perseguição explícita em terreiros, onde as pessoas entram, vandalizam, depredam, nitidamente com uma intenção de destruição, né, pautada nessa compreensão de que não há espaço para outras religiões senão aquelas com a qual os colonizadores se identificavam né? Era o cristianismo e, atualmente, houve o crescimento dessa tendência neo pentecostal, no Brasil, né? Mas eu digo aqui muito em termos gerais. Falo desses que promovem críticas e não têm o devido respeito com as religiões de matriz afro.
KAREN Por que você é de esquerda?
JEFERSON Todas as minhas referências desde menino, desde criança têm relação com a luta social. Quando criança fiz capoeira e a capoeira por si só é um instrumento de luta social no sentido até prático mesmo do combate físico que, por exemplo, as pessoas escravizadas tinham com os senhores e outras instâncias do poder. Tive contato com a mensagem das músicas cantadas, as cantigas de roda que cumprem uma função de passar uma mensagem, têm uma função pedagógica.
Mesmo não sabendo exatamente o que era ser de esquerda eu já me situava nesse campo. Nessa dimensão da capoeira, ela permite que a gente tenha uma consciência, principalmente sobre o que é ser uma pessoa negra no Brasil e de que maneira a situação da população negra no Brasil, predominantemente, de pobreza, de miséria, está relacionada com questões de ordem econômica e social.
Se a gente fosse estabelecer um ponto de marcação poderia falar que eu sou de esquerda, por esse motivo das referências e ao mesmo tempo porque há um sonho, uma esperança de uma sociedade melhor, de uma sociedade que não se acomode com as coisas do jeito que elas estão. Não se acomode com esse discurso liberal que diz que, para que existam vencedore,s tem que haver perdedores.
Há esse incômodo na dimensão ali da roda da capoeira, do samba. O ser humano mesmo, o caráter vai se formando e vai questionando essas coisas. Tem também lemas liberais que eu discordo. Eles tendem a descrever situações, dizendo que as coisas são assim porque são assim, não há o que fazer para mudar, o mundo sempre foi assim, não é só no Brasil... Coisas desse nível. Por discordar disso tudo, sou de esquerda.
KAREN Tem como não ser de esquerda, tendo que fazer luta social?
JEFERSON Olha, a gente pode pensar nesse conceito de ser esquerda no sentido ideológico, mas também a gente pode pensar como um conceito passível de uma aplicabilidade vazia. Em tese, em teoria não tem como você ser de esquerda, fazer luta social sem ser de esquerda. No entanto, a gente não pode negar que estamos vivendo num contexto que muitas pautas de esquerda estão sendo levantadas, disseminadas, trabalhadas em ambientes midiáticos que não têm comprometimento com a esquerda. De fato, fazem uma mobilização social, mas não necessariamente uma luta social. Porém, existe uma promoção de consciência social. Com o advento das redes sociais existe um modo de mensurar, de aferir as tendências das pessoas e esses aparelhos midiáticos gigantes acabam tendo que se adaptar a essa realidade. Somente por isso, na busca da manutenção do poder já existente há anos, essas pautas de esquerda são trabalhadas. Um exemplo prático é a luta antirracismo, que é uma pauta de esquerda. Franz Fanon foi taxativo ao afirmar que a luta contra o colonialismo é uma luta de classes, é uma luta contra o sistema econômico que só alimenta essa prática de promoção de desigualdade social e que tem implicação nos corpos negros, tanto em África quanto na diáspora. Evidentemente, aí há uma conexão inevitável entre ser esquerda e fazer a luta social, mas a gente não pode, digamos assim, cair em armadilhas. Existem propostas de conscientização social que aderem a essa agenda antirracista, mas que não estão, necessariamente, relacionadas com a esquerda, mas sim com interesses outros como chamar a atenção de patrocinadores, conseguir lucro, contratos, enfim, o velho interesse da obtenção de acúmulo de capital, o velho modus operandi das grandes redes de televisão, por exemplo.
KAREN O que você acha da luta de classes em Curitiba?
JEFERSON Eu acho que é uma luta que deve ser honrada e deve ser muito reconhecida. Tem um grande mérito. Curitiba, não tem um contexto que ajuda muito. Há toda essa imagem de uma cidade europeia, de elite, como eu disse, que invisibiliza, inclusive, essas manifestações que têm relação com a luta de classes. O fato de existir manifestações, coletivos e muitas outras práticas de militância com viés de esquerda na cidade de Curitiba, já mostra a grandeza disso tudo. Por que a despeito de práticas de invisibilização, marginalização essa resistência ela existe e não é de hoje. Não é de hoje...
Nós temos aqui grandes figuras de esquerda que continuam até hoje sobrevivendo mesmo tendo passado um longo tempo de militância. Então, eu acho que é uma luta digna de louvores porque, em Curitiba, não é uma coisa fácil organizar uma luta. Por isso ela é forte e de grande conhecimento.
KAREN E a aproximação da esquerda com centro, com a direita, incomoda?
JEFERSON Do ponto de vista ideológico incomoda sim. Quando foi lançada a chapa, quando foi lançada a hipótese Lula Alckmin houve um certo incômodo, desconforto por conta que tinha algo que poderia significar a repetição de uma atitude já tomada anteriormente, que culminou na queda da Dilma, no golpe...
No entanto, olhando do ponto de vista prático, isso que tenciona, né, quando a gente fala de dialética, de marxismo, do ponto de vista prático, eu vejo como uma estratégia que pode funcionar e cooperar para que o atual mandato não vigore, não se mantenha no poder. Então, a despeito do incômodo, eu tenho uma preferência por essa tomada de decisão e essa atitude do que por algumas outras que estão se apresentando, por exemplo, como o caminho do meio, via do meio, que podem culminar na reeleição do atual presidente que, sem dúvida, se apresenta fazendo o pior mandato eleito democraticamente no Brasil desde que houve a retomada da democracia na década de 90.
Então, nesse sentido, de um ponto de vista teórico, não posso negar que houve um desconforto e que ainda há, de um certo modo, um receio... Mas, como eu falei, do ponto de vista prático, pensando que isso pode funcionar, há uma assimilação melhor do que algumas outras vias que estão se adotando e que acabam auxiliando e servindo como ferramenta para uma possível reeleição, um cenário que eu não quero de jeito nenhum e pessoa alguma de esquerda gostaria que se repetisse.
KAREN Voltando ao samba, mas agora pra falar sobre tocar nas rádios. Muitos músicos costumam dizer que os meios de reprodução musical são elitistas.
JEFERSON Em Curitiba, pode-se dizer que sim. Eu vou colocar em termos da maioria das pessoas ouvintes de música e da música que se consome talvez de maioria aqui, né? Em bares, em ambientes que acabam sendo culturais, no sentido tanto gastronômico como social, musical há essa ocupação de espaço por parte de músicas alternativas como samba, forró e músicas do norte do Brasil. Nós temos o Bar Folia, por exemplo, né? Temos agora a moda de viola... Nós temos ocupação do espaço. Não dá para não reconhecer.
Mas, se pensarmos em termos de mídia como televisão e rádio, não tem como dizer que não é elitista porque esses espaços são ocupados pelos poucos que podem pagar. Dificilmente, o rádio hoje é uma abertura de oportunidade para quem está começando um trabalho. Na verdade acaba sendo ali, mais uma espécie de corporação na qual são lançados os nomes das pessoas que já estão numa linhagem de uma sequência de um trabalho que já vem sendo realizado em prol do que se chama hoje de sertanejo universitário.
Então a mídia é elitista nesse sentido. Difícil lutar contra esse contexto da rádio. Isso se dá no Brasil creio de um modo geral. Essa invasão do sertanejo universitário... Uma elite, inclusive, ligada possivelmente ou não, posso estar aqui conjecturando, ao agronegócio que permite a ocupação desses veículos de mídia por parte do sertanejo universitário. A música é elitista e pode ser elitista se vinculada com essa necessidade de investimento de capital para execução e difusão em mídias como rádio e televisão. No entanto, ainda temos algumas outras mídias que hoje vêm auxiliar na promoção de outras expressões musicais, mas que não se comparam com a ocupação de veículos como rádio e televisão.
KAREN A história africana mostra que terra não precisa ser privada. Terra pode ser de todos e não se herdar. Permanece para o usofruto do próximo. O que você acha?
JEFERSON Faz sentido essa questão de que a terra não é uma herança, que não há um documento que comprove a noção de propriedade. Posso fazer uma relação com a vida nos morros que foi – não sei se ainda é - em comunidade.
A gente vê pelas manifestações culturais: as escolas de samba nada mais são que agremiações, assim como os blocos, os ranchos foram. Uma produção coletiva, né? O senso de unidade, de união permitiu, inclusive, a conquista de alguns direitos nos morros. Se a gente olhar 30, 40 anos atrás não tinha saneamento básico... Não que hoje a situação seja ideal... Mas, isso representa bem essa ideia de não ter uma posse, de ter vida compartilhada...