Refúgio do ruído

Curadoria e textos de João Villaverde

Todo dia terminado em 7 (07, 17 e 27) no seu e-mail, de graça. Uma newsletter bem pessoal. Aqui você receberá sugestões de leituras acompanhadas de breves comentários. A ideia do nome veio do ambiente insalubre lá fora, cheio de ruído.

Este e-mail foi encaminhado a você? Se inscreva clicando aqui para receber a newsletter direto na sua caixa de entrada.

A sina dos 30 anos

 

De 30 em 30 anos, aparentemente, o Brasil busca o abismo. Nas eleições presidenciais de 1960, o candidato Jânio Quadros foi apresentado ao eleitorado como único portador da moralidade, elencando a corrupção como o grande problema nacional. Filiado a um partido de aluguel, Jânio bateu de frente com as instituições, em especial o Congresso Nacional, desde o início de seu mandato. Depois de confrontos desnecessários e um claro despreparo, Jânio largou o cargo, apresentando uma renúncia em 25 de agosto de 1961.

Trinta anos depois daquela eleição, Fernando Collor ganhou uma disputa cheia de profissionais (Mario Covas, Leonel Brizola, Ulysses Guimarães, Lula, Ronaldo Caiado etc.) ao ser percebido como o portador único da moralidade, elencando a corrupção como principal problema nacional. Filiado a um partido de aluguel e sem compreender o presidencialismo de coalizão, achando ser possível governar se comunicando diretamente com sua base, Collor bateu de frente com as instituições desde o início. Seu trágico governo foi interrompido com um processo de impeachment, em dezembro de 1992. 

Trinta anos depois de Collor, cá estamos nós. Nas eleições de 2018, um deputado federal que nunca tinha liderado sequer uma bancada ao longo de 28 anos em Brasília, foi eleito presidente ao se apresentar ao eleitorado como único portador da moralidade e apostando na "mudança de tudo isso daí", sem qualquer embasamento ou argumentos.

Filiado a um partido de aluguel e sem compreender o presidencialismo de coalizão, Bolsonaro tomou posse em 2019 e, desde então, bate de frente com o Congresso, com os governadores (incluindo aqueles de seu campo político) e até com seu partido de aluguel (que era o PSL). 

Essa sina nunca termina bem. Como terminará a lástima atual? A jornalista Maria Cristina Fernandes, com quem tive a honra de trabalhar mais de dez anos atrás, escreveu esta semana que até entre militares há um consenso de que o melhor caminho seria a renúncia do presidente. Em troca de sua saída do cargo seria oferecida uma anistia aos filhos, todos envolvidos com problemas sérios, de ordem judicial e política.

"Ainda que Bolsonaro hoje não tenha nem 10% dos votos em plenário, um processo de impeachment ainda é de difícil de viabilidade. Motivos não faltariam. Os parlamentares dizem que Bolsonaro, assim como a ex-presidente Dilma Rousseff, já não governa.", escreveu a Cris Fernandes.


Refleti muito sobre isso no ano passado, quando escrevi um artigo com meu orientador do mestrado, professor Cláudio Couto, da FGV. Para ler, clique aqui. Ando refletindo novamente sobre isso.

Se essa sina também te instiga, convido a leitura de um artigo de Bolívar Lamounier, sobre "presidencialismo plebiscitário", além dos trabalhos seminais de Brasílio Sallum Jr., "O impeachment de Fernando Collor", e de Sérgio Abranches, "Presidencialismo de coalizão".

O gabinete do doutor


Cesare é um sonâmbulo letárgico, manipulado a cometer assassinatos pelo Dr. Caligari nas noites frias de uma Alemanha fantasmagórica, pontiaguda e irregular. Uma história chocante e que (aposto) te assustará ainda hoje, a despeito do roteiro em questão ser de um filme lançado há exatos cem anos, no início de 1920.

O diretor, Robert Wiene, ficara trancafiado em hospital na Primeira Guerra Mundial e, por essa experiência, topou de imediato filmar o texto de dois jovens ex-soldados, Hans Janowitz e Carl Mayer. No papel de Cesare, um brilhante Conrad Veidt (que inspiraria Johnny Depp em "Edward, Mãos de Tesoura", de Tim Burton).

Em 1920, quando "O Gabinete do Dr. Caligari" foi lançado, ninguém nunca tinha visto nada parecido com aquilo. Os cenários desenhados com motivos expressionistas, as legendas estilizadas, a direção claustrofóbica, a encenação minimalista. Era o cinema em seu auge, apesar da Alemanha estar arruinada e prestes a ser engolida pela hiperinflação. Mais tarde, o crítico Kracauer refletiria que o filme deixava claro como o povo alemão estava fadado ao nazismo: estavam todos letárgicos, aguardando um horroroso Dr. Caligari para liderar a manipulação. O inconsciente alemão era propenso ao totalitarismo. 

Você pode assistir o filme clicando aqui. Se quiser ler mais, gostei muito deste ensaio do doutor em história da arte pela USP, Donny Correia: "pesadelo centenário".

P.S. A imagem desse segmento é um trecho de "O gabinete do Dr. Caligari". Se quiser uma versão light, veja a homenagem que os californianos do Red Hot Chili Peppers fizeram ao grande filme alemão.

 

A marcha da insensatez

 

Estou estupefato com o que ocorre no Brasil. Já sabemos que na última vez que algo assim ocorreu (a gripe espanhola, em 1918), os territórios que aderiram mais rapidamente ao confinamento (lockdown) tiveram uma saída da crise mais rápida. Se já sabemos disso, por que então há essa loucura de contrapor a saúde e a economia?

Se a Organização Mundial da Saúde, formada por médicos, infectologistas e epidemiologistas do mundo inteiro, recomenda o confinamento, por que então há vozes negando a estratégia?

Eu não sei você, mas entre a OMS e o fritador de hambúrguer Júnior Durski, dono do Madero, eu escolho a OMS. Entre Angela Merkel e Bolsonaro, fico com a grande líder alemã. No mesmo dia 24 de março, Merkel e Bolsonaro endereçaram seus conterrâneos. Ela, iluminista, humana e direta ao ponto. Ele, medieval, egoísta e perdido na paranoia. Se você teve o azar de assistir Bolsonaro, então corra e assista Merkel, aqui.

É digno de nota que Boris Johnson, o primeiro-ministro inglês que defendia ignorar o COVID-19 e seguir em frente apenas vinte dias atrás, agora defende o oposto: que todos os ingleses fiquem em casa. O próprio Boris foi diagnosticado com o vírus.

Precisamos, todos, ficar em casa. Cabe ao governo entrar em campo para permitir que os trabalhadores fiquem em casa e que as empresas não quebrem tendo de arcar com salários sem ter faturamento. Se o governo não entrar, aí me parece claro que os aproveitadores insensíveis surgirão (como as ridículas carreatas em Santa Catarina) para fazer as pessoas deixarem suas casas e ir trabalhar. Esta é uma marcha da insensatez, inflamada pelo presidente.

Uma piora do déficit primário em 2020, por conta da pandemia, é mais do que justificada. Um aumento do endividamento público, num misto de financiamento de medidas extraordinárias (e temporárias!) e queda do PIB, é não apenas esperado, como relativizado: o mundo inteiro atravessa a mesma circunstância. Além disso, nossa dívida em dólares é irrelevante, ou seja, nosso passivo é rolado em reais e os juros estão baixos. A hora é agora. Não fazer nada é o mesmo que optar pelo caos social. 

Gostei muito do artigo do economista Persio Arida, na Folha, e fiquei feliz de ver que muitas de suas sugestões, enfim, viraram políticas públicas, algumas anunciadas hoje mesmo. O Banco Central permitirá a empresas pequenas e médias pagar seus funcionários formais por dois meses, a juros básicos (sim, a Selic, sem spread), com custo do Tesouro e operação do BNDES. A medida está correta.

Quanto aos trabalhadores informais, a pressão de pesquisadores de diferentes tendências, como os incansáveis Mônica De Bolle, Marcelo Medeiros, Tatiana Roque, Armando Castelar e tantos e tantos outros, fez com que o Congresso ocupasse o espaço vazio deixado pelo Executivo, que prefere dobrar a aposta na irracionalidade. A Câmara aprovou uma renda básica de R$ 600,00, que será confirmada pelo Senado na semana que vem. É preciso mais. Os valores são baixos e é preciso chegar a muito mais gente.

*
Foi uma honra participar do programa Roda Viva da última segunda-feira, a convite da apresentadora Vera Magalhães. Entrevistamos o economista Armínio Fraga, que trouxe sugestão de usar o Cadastro Único de programas sociais, e amplia-lo, de forma a chegar a 100 milhões de brasileiros imediatamente, que precisam de apoio urgente. Para assistir na íntegra, clique aqui.

PAUSA
 

Feche os olhos.

Agora imagine ouvir Manuel Bandeira declamando a própria poesia. Pablo Neruda, Carlos Drummond de Andrade e outros e outras poetas lendo as palavras como eles e elas pensavam. Foi isso o que fez o selo Festa, que o paulista Irineu Garcia tocou sozinho de 1955 a 1971, quando foi forçado a deixar o país por força da ditadura militar. O selo ficou mais famoso por ter lançado a Bossa Nova (sim, "Canção de Amor Demais", de Elizeth Cardoso, saiu pelo Festa). Mas seus discos de poesia, há muito esquecidos, foram encontrados e trabalhados para lançamento em streaming por Gracita Garcia Bueno, sobrinha de Irineu (já falecido) e Anete Rubin Mignone, filha do grande pianista Francisco Mignone. 

Uma palhinha: o grupo Jograis de São Paulo, formado em 1956 no teatro de Arena, gravou um disco para o Festa declamando Mário de Andrade. Enquanto este não sai, você pode escutar os Jograis declamando Drummond. Clique aqui. 

P.S. Tirei a foto que acompanha esse segmento Pausa dentro de um prédio em Paris, numa viagem de trabalho em outubro de 2019. 

Sobre a newsletter
 

Decidi escrever essa newsletter para compartilhar com amigas e amigos alguns pensamentos e algumas das leituras mais interessantes que venho fazendo. Se você tiver dicas na linha do que encontrou aqui, me mande!

 

Todo dia terminado em sete (07, 17 e 27) mandarei ela para você. A primeira foi no dia 07/03 e você pode ler aqui. A segunda, de 17/03, pode ser lida clicando aqui.


P.S. Eu tirei a foto que acompanha esse segmento há alguns meses, durante uma viagem de trabalho para Londres. Estamos dentro do Ship´s Tavern, uma taverna instalada no centro de Londres desde 1549 (você não leu errado; o bar foi inaugurado um século antes de Hobbes escrever O Leviatã e antes, também, da Revolução Gloriosa).

Obrigado por chegar até aqui. No dia 07 tem mais. 

Compartilhar

Compartilhar no FacebookCompartilhar no X (Twitter)

Mais sugestões e dicas?