"O Samba MÃE SOLTEIRA tem uma melodia que traz notas de um drama. Já começa com um lamento do eu lírico: hoje não tem ensaio na escola de samba. O morro tá triste. O pandeiro calado. Ele já nos coloca dentro desse drama. Nós, como ouvintes, perguntamos: o que está acontecendo?
Wilson Batista era um grande cronista. Ele fazia crônicas na forma de samba. Eram verdadeiras narrativas que, por vezes, tinham relação com fatos concretos, verdadeiros Havia outros sambas também já de caráter fictício, às vezes, até com notas de comédia mesmo. Mas, o samba Mãe Solteira foi composto por Wilson Batista e Jorge de Castro lançado 1964, interpretado por Roberto Silva. É um samba primoroso para pensarmos o que era a nossa sociedade da década de 50. Como pensavam? Quais eram as categorias que operavam nos contextos que fazem pensar as relações como matrimônio e toda moral vigente naquele contexto.
E, não bastasse as letras serem tão bem amarradas com uma habilidade de cronista que tem pouco espaço no jornal e, em poucas linhas, tem que sintetizar toda uma história, Wilson Batista tinha melodias incríveis, maravilhosas. Por exemplo. E o arranjo segue nessa toada. Esse samba faz a gente repensar categorias morais que vão se criando com o tempo. Muito embora a gente olhe para esse samba como estando no passado praticamente 68 anos atrás, a gente pode também mudar um pouco o ponto de vista e perceber o quanto isso é atual Existe sim um modo de pensar moralista a respeito do tema.
A personagem do samba é Maria que, como sabemos, é um nome muito popular em decorrência do fato de ter sido o nome da mãe de Jesus Cristo segundo a narrativa bíblica. E essa Maria está passando por um drama que é o fato de que ela está grávida, mas não tem compromisso matrimonial legal naquele contexto machista, a naquele contexto em que existiam categorias como essa de desquitado que – quando se separava não podia casar de novo. O que eu quero fazer notar é a existência de um aporte jurídico para colocar rédeas nos comportamentos e nos corpos, sobretudo nos corpos femininos. Wilson Batista, observador em relação a isso, compôs esse samba. Eu falo mais do Wilson porque ele tinha essa característica de cronista. Então eu deduzo que tenha muito mais assim tinta da caneta do Wilson Batista (muito embora muitas pessoas digam que ele tenha sido um semianalfabeto, semianalfabeto com mais de 600 composições).
E o que acontece com Maria? Por que ele diz logo no primeiro verso que não tem ensaio na escola de samba? Olha só: A Maria que coincidentemente morava na Penha, que é da Penha lá década de 50, ela ateou fogo às suas vestes por conta do seu namorado. Aí vêm os outros versos que falam por si mesmos: o seu desespero foi por causa de um véu; dizem que essas Marias não têm entrada no céu. Parecia uma tocha humana rolando pela ribanceira. A pobre infeliz teve vergonha de ser mãe solteira. Aí a gente percebe o quão isso é uma crítica a uma categoria social que não permite que uma Maria seja uma Maria mãe solteira (retomando aquela ideia de que a Maria é nome da mãe de Cristo, segundo narrativa bíblica). A exceção, talvez, seja a mãe de Cristo. Tem toda uma narrativa a respeito de operações milagrosas que levam a concluir que Jesus não era o filho de José com quem Maria tinha esse laço de maneira formal na tradição judaica.
Esse samba nos permite pensar essas lutas sociais . Embora tenha se dado há mais de 60 anos ecoa até hoje. É interessante a gente atualizar uma conversa a respeito desse samba. Inclusive, é bom perguntar: O que imita o quê? A vida imita a arte ou a arte imita a vida? A Maria da Penha que é retratada nesse samba hoje tem um nome comum. Tem uma lei que exatamente busca frear a violência contra as mulheres por conta de certas ideologias e a moral vigente."