"O samba GOLPE ERRADO é uma crítica significativa, relevante. Foi realizado a partir de um aspecto social muito presente no Brasil do contexto de Geraldo Pereira (1918-1955), compositor deste samba. Na letra, os versos indicam uma pessoa, um homem que tem uma pose assim de malandro, né? Vamos colocar entre aspas esse malandro. É uma pose de malandro, na medida em que ele usa um terno alinhado, na medida em que ele aplica um golpe de fato. Uma pessoa, que é a sua companheira, recebe o que Geraldo Pereira chama de golpe errado. Ele coloca no samba as duas faces do acontecimento... Esse malandro que se diverte, que vai ao samba muito bem vestido, com a roupa alinhada...
Se, por um lado, tem esse malandro vestido em condições impecáveis, sob o signo de capricho, do outro lado tem a companheira desse malandro, sempre com aspas, né? Tem a companheira desse homem que fica em casa, fazendo as atividades do lar, que se configura um trabalho. Ao que parece Geraldo Pereira já estava tendo uma intuição de que, olha, há quem trabalhe para que esse malandro goze dessa boa vida e consiga se exibir a um certo público. E o golpe é isso, né? A nega dele- aqui fazendo uma menção direta a letra do samba -, (também entre aspas a nega dele) fica em casa trabalhando, ralando, passando a roupa, preparando o prato da comida que ele gosta, que mais aprecia... Se por um lado tem isso, tem, por outro lado, o malandro que desconsidera isso e é ingrato. Por isso desfere o golpe errado numa pessoa trabalhadora, pessoa que está com ele, que está ao lado dele no dia a dia e que não merece esse golpe.
As aspas no termo malandro são porque existem dois tipos de malandro, de malandragem. Existe a conotação mais próxima que a gente popularmente adota. No entanto, existe um valor também nesse conceito que não tem relação com quem desfere esse golpe errado, mas sim com os malandros que, de certo modo, driblavam as condições adversas da vida como um ato de sobrevivência, como ato de manutenção, por vezes, da sua identidade, da sua cultura. Muitos sambistas, de certo modo, foram malandros, tiveram que ceder em alguns pontos, tiveram que fazer um movimento de faz que vai, não vai, juntamente com empresas que faziam registros nas rádios para que essa cultura se difundisse.
Existem malandros e malandros... Malandros que não gostavam da situação de trabalho por compreenderem que era uma situação abusiva, injusta, antes de tudo porque a gente vem falando nos últimos diálogos numa situação de mais-valia nítida, capaz de ser percebida de uma maneira inconfundível. Então, eles eram malandros no sentido que buscavam se desviar desse modo de vida... Mas, não é o caso deste malandro entre aspas aqui que eu estou mencionando na música. Ele se aproveita da situação que já é opressiva, que já é difícil. Ele aproveita para ocupar uma posição social que não convém. Isso acaba sendo uma espécie de lepra para o contexto da vivência nos morros, da vivência dessas pessoas mais pobres. Ele desfere um golpe numa pessoa que está em condição análoga dele. Não está desferindo um golpe num grande sistema opressor. Muito pelo contrário. Está usufruindo de algo, tirando proveito.
É diferente dos malandros que tiveram que ter gingados diversos para que a cultura negra, preta sobrevivesse, fosse cultuada no Brasil como a expressão brasileira por essência, como expressão musical brasileira que é o samba.
Gosto muito dessa gravação. Ciro Monteiro, como um dos intérpretes mais frequentes de sambas de Geraldo Pereira, conseguiu incorporar bem o espírito da música. E essa, em especial, é acompanhada pelo conjunto de Benedito Lacerda. É o que consta nos registros. Então, além de tudo, tem esse brilho, de ter o acompanhamento de um compositor tão importante para a música popular brasileira. É um frequente parceiro de Pixinguinha em chorinhos, mas também um compositor letrista de vários sambas que tratam de temáticas semelhantes a essas que a gente está abordando aqui nessa série."